" - E aqui tendes, prosseguiu Belmonte, cuja rouquidão parecia ter diminuído com a cerveja -, aqui tendes o porquê da demora tão deplorada por Gerrit Van Herzog, razão essa, aliás, que sempre lhe escaparia, ainda que nos rebaixássemos a apresentar-lha. Depois de haver, segundo uns, homologado o universo, e segundo outros provado Deus, ou, pelo contrário, a sua inutilidade (tais zé-ninguéns devem ser rejeitados a par), eis-me de cu assente na terra nua e, pendurados por cima da minha cabeça, os meus silogismos perfeitos e as minhas incontroversas demonstrações, alto demais, contudo, para que eu, num golpe de rins, me consiga agarrar a eles. Executadas que foram as obras-primas da lógica e da álgebra, só me resta a mim apanhar com a mão um punhado desta terra sobre a qual me arrasto desde que fui feito... E da qual sou feito... E da qual sois feito. E da qual um simples montinho é mais complicado do que todas as minhas formulações. Pensei recorrer à filosofia, à química, a todas as ciências do interior das coisas. Mas, na primeira, deparei com abismos e ocultas contradições, tal como nos nossos corpos, sobre os quais, aliás, a fisiologia pouco sabe... Na segunda, voltava às generalizações e aos números... Se houvesse em qualquer parte um eixo a que, como um mastro de cocanha, pudéssemos trepar até ao que aquela gente supõe estar nas alturas... Mas não vejo outro eixo que não seja a coluna vertebral, a qual, como sabe, forma uma curva... Ou então descobrir um buraco pelo qual descer até não sei que antípodas divinos... E sempre era preciso que esse eixo, ou esse buraco, estivesse no centro, fosse um centro... Mas a partir do momento em que o mundo(aut Deus) é uma esfera cujo centro está em toda a parte, como afirmam os habilidosos (se bem que eu não veja por que é que ele não poderá ser de igual modo um poliedro irregular), bastaria cavar em qualquer sítio para se chegar a Deus, da mesma maneira que, à beira-mar, quando se cava areia se tem água... Escavar com os dedos, com os dentes, com o focinho, nessa profundidade que é Deus... (Aut Nihil, aut forte Ego.) Porque o segredo está em eu escavar em mim, já que neste momento eu estou no centro: eu e a minha tosse, essa bola de água e de lama que sobe e desce no meu peito e me abafa, eu e a diarreia destas entranhas estamos no centro... Este escarro que rola dentro de mim, estriado de sangue, estas tripas que me atormentam como nunca as de outrem me hão-de atormentar, e que no entanto são feitas também da mesma carne, são também o mesmo nada, o mesmo todo... E este medo de morrer, quando todavia sinto a vida pulsar com paixão até à ponta do dedo grande do pé... Quando basta uma baforada de ar fresco entrar pela janela para eu ficar, como um odre, inchado de alegria... Dá-me cá esse caderno... - ordenou ele a Natanael, apontando para um maço de papéis que estavam em cima da mesa."
"Um homem obscuro" Marguerite Yourcenar