Venho de ver a sua exposição. De início, choca a distância entre dois temas: a mulher ociosa e a mulher que trabalha. Custa a compreender como uma mesma sensibilidade pôde sentir a beleza serena e cuidada da mulher que vive para si para os seus vestidos, o seu “ménage”, o seu aspecto e a beleza do vigor e do esforço da mulher que luta pela vida e pelo pão, e que, por tal, se verga sob insuportáveis fardos.
Esse contraste tenho-o como a maior lição talvez dada involuntariamente a tirar da exposição dos seus trabalhos.
Mas se da parte do artista não houvesse apenas vibração ante o "espectáculo" do trabalho; se houvesse também uma compreensão do que remediavelmente doloroso tem esse trabalho; então haveria que exigir mais.
Mais que os bustos ajoujados pelo esforço. Mais que as mãos crispadas pelo desespero. Mais que as feições sombrias e trágicas. Mais que os braços enrodilhados sobre o tronco, a exprimirem retraimento forçado de aspirações. Mais que os passos cansados. Haveria que exigir do artista uma compreensão paralela da beleza serena das elegantes burguesas, do que essa beleza deve a esses outros corpos deformados, do que essa serenidade deve a essas outras almas inquietas e angustiadas. Das “burguesinhas” haveria que traduzir o egoísmo, a vaidade, o vazio de sentimentos e -acima de tudo o seu desprendimento e desinteresse por aqueles a cujo esforço devem tudo com que se adornam e pintam, tudo o que comem e bebem. E haveria ainda que ridicularizar. Não quero dizer que se deformasse a realidade. O que é lamentável não é o facto de o artista não traduzir assim o mundo. Porque se assim o não vê, assim o não deve traduzir (exige-o a sinceridade, a base de toda arte séria). O que é lamentável é o facto de o artista assim o não ver, assim o não sentir. Porque, caro doutor, são dois mundos sim, mas que se interpenetram e explicam mutuamente.
Por isso, tenho como parte de mais interesse na exposição a série de quadros de mulheres no trabalho. Ao contrário do que sucede com muitos pintores "modernos" não há um embelezamento artificial da mulher trabalhadora. Ela nas feições contraídas, e nas atitudes desalentadas ou desesperadas, e na tragédia dos olhos que procuram resistir à sombra e à sonolência da fadiga, se adivinha o descontentamento e a vontade de libertação - mal definidos ainda, talvez excessivamente instintivos, num passo para o levantamento e para revolta.
A mulher trabalhadora aparece mergulhada nas trevas poirentas das oficinas, onde raras manchas de luz lembram que no nosso país o sol brilha. Ou então, os seus pés descalços e inchados chapinham dolorosamente na lama. As roupas são ásperas, sujas, suadas e bafientas. As cabeças abaixam-se sob o peso do fardo. Porém não é o desalento que as atira irresistivelmente para baixo. As cabeças não pendem. Vergam sim mas retesadas e enérgicas; suportando, mas reagindo. Essa sua série de trabalhos marca uma posição nova na nossa pintura moderna. Constitui uma primeira interpretação vigorosa, realista e revolucionária do mundo do trabalho.
Sem dúvida, eu não tenho a pretensão de dizer-lhe coisas novas, nem de lhe dar conselhos. Mas, vendo a sua exposição, senti-me no dever de encorajar o artista, de o incitar a ir mais longe, mesmo que a coragem lhe não falte e seja já seu propósito assente ir ainda mais longe. Mas ir mais longe com determinada direcção. E, na demarcação dessa direcção, vejo com desgosto muitos jovens progressistas deixarem agradar-se mais pelas "notas de Paris", que pelas múltiplas «mulheres no trabalho».
Álvaro Cunhal
Mais: Gostaria de ter um quadro seu, mas não posso comprar. Isto, de certa forma, é uma afirmação brusca e inesperada. Mas também é franca e sincera.