11 de setembro de 2010

Baby



Ao Tempo



Encontrei-o assim ao dobrar a esquina, a cama, a curva do rosto, a ruga.

Esbarrei com ele assim uma noite entre as seis e as sete ao olhar o rio. Corria e reflectia muito leve, muito fino.

E sentia, sentia-o. Sentou-se ao meu lado e adormeceu no meu colo e ali ficou a embalar a embala-lo, devagarinho sem expirar sem inspirar, só olhos, só espanto, só inquietação.

O que era aquilo que ali passava e me agarrava e me detinha e me fazia pensar, saber...

O que era aquilo do TEMPO plantado a olhar para mim a comer-me pela pele, pelos ouvidos, pela boca.

Cresceu, cresceu e com ele a vontade de não o poder deixar passar sem o devorar todo, sorver todo, mergulhar...



Parti, assim, com ele no fundo dos sapatos a galgar a cidade a vida. Empurrei as portas, bati nos ombros, chamei-os a todos pelos nomes para virem comigo ver o fundo do meu sapato.

E assim viajei horas, dias, meses, feita cinderela e príncipe perfeito à procura dos pés, dos passos que se cruzassem com os meus e fizessem dos sapatos chapéus e dos chapéus pulseiras e das pulseiras chaves e das chaves cintos e dos cintos anéis e dos anéis dedos e dos dedos mãos, caras, peitos, umbigos, sexos, corações e dos corações fígados e dos fígados diários, diários sem dias sem horas sem minutos, só vontade, vontade de comigo descobrir o que és...



4 de Setembro 1997
Olga Roriz





8 de setembro de 2010

Why Won't You Stay




três poemas de amor
1

fosse apenas o desespero da ocasião da descarga de palavreado

perguntando se não será melhor abortar que ser estéril

as horas tão pesadas depois de te ires embora começarão sempre a arrastar-se cedo de mais as garras agarradas às cegas à cama da fome trazendo à tona os ossos os velhos amores órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do que nunca com a fome negra a manchar-lhes as caras a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado nem nove meses nem nove vidas

2

a dizer outra vez se não me ensinares eu não aprendo a dizer outra vez que há uma última vez mesmo para as últimas vezes últimas vezes em que se implora últimas vezes em que se ama em que se sabe e não se sabe em que se finge uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz se não me amares eu não serei amado se eu não te amar eu não amarei

palavras rançosas a revolver outra vez no coração amor amor amor pancada da velha batedeira pilando o soro inalterável das palavras

aterrorizado outra vez de não amar de amar e não seres tu de ser amado e não ser por ti de saber e não saber e fingir e fingir

eu e todos os outros que te hão-de amar se te amarem

3

a não ser que te amem

samuel beckett





27 de agosto de 2010

Red Right Hand




" - E aqui tendes, prosseguiu Belmonte, cuja rouquidão parecia ter diminuído com a cerveja -, aqui tendes o porquê da demora tão deplorada por Gerrit Van Herzog, razão essa, aliás, que sempre lhe escaparia, ainda que nos rebaixássemos a apresentar-lha. Depois de haver, segundo uns, homologado o universo, e segundo outros provado Deus, ou, pelo contrário, a sua inutilidade (tais zé-ninguéns devem ser rejeitados a par), eis-me de cu assente na terra nua e, pendurados por cima da minha cabeça, os meus silogismos perfeitos e as minhas incontroversas demonstrações, alto demais, contudo, para que eu, num golpe de rins, me consiga agarrar a eles. Executadas que foram as obras-primas da lógica e da álgebra, só me resta a mim apanhar com a mão um punhado desta terra sobre a qual me arrasto desde que fui feito... E da qual sou feito... E da qual sois feito. E da qual um simples montinho é mais complicado do que todas as minhas formulações. Pensei recorrer à filosofia, à química, a todas as ciências do interior das coisas. Mas, na primeira, deparei com abismos e ocultas contradições, tal como nos nossos corpos, sobre os quais, aliás, a fisiologia pouco sabe... Na segunda, voltava às generalizações e aos números... Se houvesse em qualquer parte um eixo a que, como um mastro de cocanha, pudéssemos trepar até ao que aquela gente supõe estar nas alturas... Mas não vejo outro eixo que não seja a coluna vertebral, a qual, como sabe, forma uma curva... Ou então descobrir um buraco pelo qual descer até não sei que antípodas divinos... E sempre era preciso que esse eixo, ou esse buraco, estivesse no centro, fosse um centro... Mas a partir do momento em que o mundo(aut Deus) é uma esfera cujo centro está em toda a parte, como afirmam os habilidosos (se bem que eu não veja por que é que ele não poderá ser de igual modo um poliedro irregular), bastaria cavar em qualquer sítio para se chegar a Deus, da mesma maneira que, à beira-mar, quando se cava areia se tem água... Escavar com os dedos, com os dentes, com o focinho, nessa profundidade que é Deus... (Aut Nihil, aut forte Ego.) Porque o segredo está em eu escavar em mim, já que neste momento eu estou no centro: eu e a minha tosse, essa bola de água e de lama que sobe e desce no meu peito e me abafa, eu e a diarreia destas entranhas estamos no centro... Este escarro que rola dentro de mim, estriado de sangue, estas tripas que me atormentam como nunca as de outrem me hão-de atormentar, e que no entanto são feitas também da mesma carne, são também o mesmo nada, o mesmo todo... E este medo de morrer, quando todavia sinto a vida pulsar com paixão até à ponta do dedo grande do pé... Quando basta uma baforada de ar fresco entrar pela janela para eu ficar, como um odre, inchado de alegria... Dá-me cá esse caderno... - ordenou ele a Natanael, apontando para um maço de papéis que estavam em cima da mesa."

"Um homem obscuro" Marguerite Yourcenar

16 de agosto de 2010

Cantar Alentejano




Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizao a viu morrer


Ceifeiras na manha fria
Flores na campa lhe vao pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que entao brotou


Acalma o furor campina
Que o teu pranto nao findou
Quem viu morrer Catarina
Nao perdoa a quem matou

Aquela pomba tao branca
Todos a querem p'ra si
O Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti


Aquela andorinha negra
Bate as asas p'ra voar
O Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar



15 de agosto de 2010

Caprice Nº.24




"Sons puros (Natanael achava que preferia, agora, os que, por assim dizer, não haviam encarnado na voz humana) que se elevavam, que recuavam depois para subiram ainda mais, que bailavam como labaredas, mas com deliciosa frescura. Entrelaçavam-se e beijavam-se como amantes, mas tal comparação era ainda demasiado carnal. Mais lembravam serpentes, só que não eram sinistros; ou clematites, ou volúbilis, só que as suas delicadas volutas não tinham um ar de fragilidade. E contudo eram frágeis; uma porta que, sem querer, batesse, bastaria ara os quebrar. À medida que prosseguiam as perguntas e as respostas entre violino e violoncelo, entre viola e cravo, ia-se-lhe impondo a imagem de bolas de oiro descendo degrau a degrau uma escadaria de mármore, ou de repuxos caindo nos tanques de algum jardim, como o senhor Van Herzog lhe dissera ter visto em Itália ou em França. Nunca na vida se atingiria tal grau de perfeição, mas essa serenidade sem igual mostrava-se todavia mutável e era feita de momentos e impulsos sucessivos; de novo se reformulavam aquelas uniões miraculosas; aguardava-se, coração a bater, o seu retorno, como se tratasse de uma alegria há longo tempo esperada; cada variação levava-nos, qual carícia, de um prazer a outro prazer insensivelmente diferente; a intensidade do som aumentava ou diminuía, ou mudava, na sua totalidade, como acontece com as colorações do céu. O próprio facto de tal felicidade se escoar através do tempo leva-nos a crer que também aí se não estava perante a pura perfeição, situada, como dizem que Deus está, numa outra esfera, mas tão-só perante uma série de miragens do ouvido, tal como existem, algures, as miragens da vista. Depois, a tosse de alguém quebrava essa grande paz, o que bastava para nos fazer lembrar que aquele milagre só podia acontecer num lugar privilegiado, cuidadosamente isento isento de ruídos. Lá fora, as carroças continuavam a chiar, um burro maltratado zurrava; os animais no açougue mugiam ou arquejavam na sua agonia; as crianças mal cuidadas e mal alimentadas berravam nos seus berços. Aqui e acolá, homens, como outrora o mestiço, morriam com uma praga nos lábios ensanguentados. Na mesa de mármore do hospital, pacientes gritavam. A mil léguas, possivelmente, a este e a oeste, troavam batalhas. Parecia escandaloso que esse imenso rugido de dor, que, se em qualquer momento viesse a entrar em nós, assim por inteiro, nos mataria, pudesse coexistir com aquele delgado fio de delícias."

"Um homem obscuro" Marguerite Yourcenar