15 de agosto de 2010

Caprice Nº.24




"Sons puros (Natanael achava que preferia, agora, os que, por assim dizer, não haviam encarnado na voz humana) que se elevavam, que recuavam depois para subiram ainda mais, que bailavam como labaredas, mas com deliciosa frescura. Entrelaçavam-se e beijavam-se como amantes, mas tal comparação era ainda demasiado carnal. Mais lembravam serpentes, só que não eram sinistros; ou clematites, ou volúbilis, só que as suas delicadas volutas não tinham um ar de fragilidade. E contudo eram frágeis; uma porta que, sem querer, batesse, bastaria ara os quebrar. À medida que prosseguiam as perguntas e as respostas entre violino e violoncelo, entre viola e cravo, ia-se-lhe impondo a imagem de bolas de oiro descendo degrau a degrau uma escadaria de mármore, ou de repuxos caindo nos tanques de algum jardim, como o senhor Van Herzog lhe dissera ter visto em Itália ou em França. Nunca na vida se atingiria tal grau de perfeição, mas essa serenidade sem igual mostrava-se todavia mutável e era feita de momentos e impulsos sucessivos; de novo se reformulavam aquelas uniões miraculosas; aguardava-se, coração a bater, o seu retorno, como se tratasse de uma alegria há longo tempo esperada; cada variação levava-nos, qual carícia, de um prazer a outro prazer insensivelmente diferente; a intensidade do som aumentava ou diminuía, ou mudava, na sua totalidade, como acontece com as colorações do céu. O próprio facto de tal felicidade se escoar através do tempo leva-nos a crer que também aí se não estava perante a pura perfeição, situada, como dizem que Deus está, numa outra esfera, mas tão-só perante uma série de miragens do ouvido, tal como existem, algures, as miragens da vista. Depois, a tosse de alguém quebrava essa grande paz, o que bastava para nos fazer lembrar que aquele milagre só podia acontecer num lugar privilegiado, cuidadosamente isento isento de ruídos. Lá fora, as carroças continuavam a chiar, um burro maltratado zurrava; os animais no açougue mugiam ou arquejavam na sua agonia; as crianças mal cuidadas e mal alimentadas berravam nos seus berços. Aqui e acolá, homens, como outrora o mestiço, morriam com uma praga nos lábios ensanguentados. Na mesa de mármore do hospital, pacientes gritavam. A mil léguas, possivelmente, a este e a oeste, troavam batalhas. Parecia escandaloso que esse imenso rugido de dor, que, se em qualquer momento viesse a entrar em nós, assim por inteiro, nos mataria, pudesse coexistir com aquele delgado fio de delícias."

"Um homem obscuro" Marguerite Yourcenar



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