25 de abril de 2012

Carta de Álvaro Cunhal a Abel Salazar



Caro Dr.Abel Salazar:

Venho de ver a sua exposição. De início, choca a distância entre dois temas: a mulher ociosa e a mulher que trabalha. Custa a compreender como uma mesma sensibilidade pôde sentir a beleza serena e cuidada da mulher que vive para si para os seus vestidos, o seu “ménage”, o seu aspecto e a beleza do vigor e do esforço da mulher que luta pela vida e pelo pão, e que, por tal, se verga sob insuportáveis fardos.
Esse contraste tenho-o como a maior lição talvez dada involuntariamente a tirar da exposição dos seus trabalhos.
Mas se da parte do artista não houvesse apenas vibração ante o "espectáculo" do trabalho; se houvesse também uma compreensão do que remediavelmente doloroso tem esse trabalho; então haveria que exigir mais.
Mais que os bustos ajoujados pelo esforço. Mais que as mãos crispadas pelo desespero. Mais que as feições sombrias e trágicas. Mais que os braços enrodilhados sobre o tronco, a exprimirem retraimento forçado de aspirações. Mais que os passos cansados. Haveria que exigir do artista uma compreensão paralela da beleza serena das elegantes burguesas, do que essa beleza deve a esses outros corpos deformados, do que essa serenidade deve a essas outras almas inquietas e angustiadas. Das “burguesinhas” haveria que traduzir o egoísmo, a vaidade, o vazio de sentimentos e -acima de tudo o seu desprendimento e desinteresse por aqueles a cujo esforço devem tudo com que se adornam e pintam, tudo o que comem e bebem. E haveria ainda que ridicularizar. Não quero dizer que se deformasse a realidade. O que é lamentável não é o facto de o artista não traduzir assim o mundo. Porque se assim o não vê, assim o não deve traduzir (exige-o a sinceridade, a base de toda arte séria). O que é lamentável é o facto de o artista assim o não ver, assim o não sentir. Porque, caro doutor, são dois mundos sim, mas que se interpenetram e explicam mutuamente.
Por isso, tenho como parte de mais interesse na exposição a série de quadros de mulheres no trabalho. Ao contrário do que sucede com muitos pintores "modernos" não há um embelezamento artificial da mulher trabalhadora. Ela nas feições contraídas, e nas atitudes desalentadas ou desesperadas, e na tragédia dos olhos que procuram resistir à sombra e à sonolência da fadiga, se adivinha o descontentamento e a vontade de libertação - mal definidos ainda, talvez excessivamente instintivos, num passo para o levantamento e para revolta.
A mulher trabalhadora aparece mergulhada nas trevas poirentas das oficinas, onde raras manchas de luz lembram que no nosso país o sol brilha. Ou então, os seus pés descalços e inchados chapinham dolorosamente na lama. As roupas são ásperas, sujas, suadas e bafientas. As cabeças abaixam-se sob o peso do fardo. Porém não é o desalento que as atira irresistivelmente para baixo. As cabeças não pendem. Vergam sim mas retesadas e enérgicas; suportando, mas reagindo. Essa sua série de trabalhos marca uma posição nova na nossa pintura moderna. Constitui uma primeira interpretação vigorosa, realista e revolucionária do mundo do trabalho.
Sem dúvida, eu não tenho a pretensão de dizer-lhe coisas novas, nem de lhe dar conselhos. Mas, vendo a sua exposição, senti-me no dever de encorajar o artista, de o incitar a ir mais longe, mesmo que a coragem lhe não falte e seja já seu propósito assente ir ainda mais longe. Mas ir mais longe com determinada direcção. E, na demarcação dessa direcção, vejo com desgosto muitos jovens progressistas deixarem agradar-se mais pelas "notas de Paris", que pelas múltiplas «mulheres no trabalho».

Álvaro Cunhal

Mais: Gostaria de ter um quadro seu, mas não posso comprar. Isto, de certa forma, é uma afirmação brusca e inesperada. Mas também é franca e sincera.




6 comentários:

rosa disse...

"Segundo Álvaro Cunhal, a sua faceta de artista plástico, mais concretamente, de desenhador, pois foi através dos desenhos que essa faceta ficou conhecida, é episódica na sua vida.

De facto, a intensa actividade política, a que dedicou toda a sua vida, desde muito jovem, impediu-o de aprofundar esta sua vocação para as artes plásticas.

Álvaro Cunhal tende a reduzir a sua experiência plástica ao facto de ter estado preso durante onze anos, oito dos quais em isolamento, e isso o ter levado a desenhar intensamente. Mas a verdade é que Cunhal desenha desde muito novo. Em 1940 ilustrou o livro Esteiros de Soeiro Pereira Gomes e é conhecido o seu hábito de estar constantemente a desenhar nas reuniões em que participa, tendo, nas suas próprias palavras, milhares de desenhos na gaveta. No entanto, desiludam-se os mais entusiastas desta sua faceta, porque nunca os irá publicar.



Além disso, sabe-se que fez outras experiências neste campo, nomeadamente na técnica de pintura a óleo, mas que, seguramente pelo seu perfeccionismo, não considerou satisfatórias.

Na introdução a uma entrevista que fez a Álvaro Cunhal, José Carlos de Vasconcelos conta: "Fora da pergunta-resposta, mas sem ser "off the record", Álvaro Cunhal ainda me contou que uma vez deixaram entrar na cadeia, quando estava preso em Peniche, tintas e uma tábua, relativamente grande. Foi então a primeira vez que pintou a óleo - e até pintou a tábua...dos dois lados! Quando com outros camaradas, conseguiu realizar a famosa fuga do velho e (então) sinistro forte, a tábua, claro, ficou lá. Mas após o 25 de Abril foi encontrada numa arrecadação pelos militares que o ocuparam; e um dia, ainda em 74, era ministro sem pasta, foram a S. Bento entregar-lha." (José Carlos de Vasconcelos, 1997)

Os "Desenhos da Prisão", a sua única obra conhecida, inserem-no no neo-realismo, pela sua temática, o povo, pelo seu carácter interventivo (mesmo feitos na prisão, sob a vigilância apertada dos guardas) e mesmo pela forma."

Fonte: http://www.citi.pt/cultura/

Luis disse...

Esse tal de Álvaro Cunhal, quem é? Que interesse pode ter alguém com um nome desses... Cunhal

Luis disse...

Não perguntes o porquê deste comentário. Foi o que me surgiu, e as aparições não se discutem.

rosa disse...

O que poderia dizer para tornar isto mais pessoal?

Que os sonhos, liberdades, projectos, realizações pessoais, sucessos, enfim, uma série de mais-valias que temos actualmente (minto, já não temos, um tal de Capitalismo desenfreado está, novamente, a roubar todo o futuro a uma geração) foi-nos oferecido por homens como este, privados de liberdade e duma vida plena. Que obras teria criado não fora ter lutado uma vida toda por nós?
E o que sabem sobre essa luta, essas privações, qualquer jovem português com menos de 30 anos?
Nada ou quase nada. Também não produzem nada ou quase nada.
Terão o mesmo arcaboiço que os de outrora?
Teremos uma nova Revolução?




Preso durante onze anos, oito dos quais em isolamento.

Luis disse...

Quantos ateus seriam capazes de dedicar uma vida a um ideal, sem olhar a recompensas materiais, acabando a vida a morar num pequeno apartamento dos Olivais.

Só prova que era um parvo, se fosse esperto acabaria num condomínio de luxo em Paris.

Já tenho a minha resposta. Era um parvo.

rosa disse...

Gosto de parvos.
:)